
Cobramor
Crónica de um vírus - Dia 32: Fiquem em Gaza

Esta coisa tanto traz ao de cima o melhor como o pior que há em cada um.
Mas tenho visto pouco do primeiro e muito do segundo.
Pelo modo como todos se comportam, até a polícia tem sido mais pedagógica do que o cidadão comum. Pelo menos, limitam-se a perguntar com um ar paternalista:
- Para onde vai, senhor transeunte?
Depois deixam seguir viagem. Pelo menos é o que se vê na televisão. E sabemos bem que se está na televisão, é verdade.
Já o resto das pessoas, agem como verdadeiros delatores. Contabilizam quantos passam a correr ou a passear o cão pelos seus jardins e janelas. Exigem que lhes sigam o exemplo:
- Fiquem em casa. Fiquem em casa. Fiquem em casa. Fiquem em Gaza. Fiquem em Gaza.
Pedem intervenção policial para os que não ficam. Cacetada neles. Predam-nos e deitem fora a chave. Pena capital.
Há até quem peça que a polícia agrida esses malditos fora-da-lei, esquecendo-se de que é assim que as ditaduras começam. A ditadura do Outro. O Eu primeiro. Com o medo e a personificação do mal. Já foram as mulheres, os judeus, os pretos, os ciganos, os chineses. Agora basta haver respiração. Não é a cor da pele, não é o credo, não é a raça, não é o passaporte, não é o que está entre as pernas. É o simples facto de respirar. Vão respirar para o raio que vos parta a todos. Sustenham a respiração. Permanentemente.
Há sempre alguém que representa o mal. Alguém que tem de ser afastado. Controlado. Subjugado. Encarcerado. Pessoas que agem como ratazanas aterrorizadas contra os irmãos, amigos e vizinhos. Relações destruídas por desacordo sobre o vírus. Sobre o estado. Sobre ficar em casa. Podia ser sobre futebol. Podia ser sobre qualquer coisa. Porque há sempre qualquer coisa sobre a qual discordamos.
Os vírus continuarão por aí. Nós continuaremos a morrer e a ficar doentes. Porque acreditávamos ser algo que só acontecia aos outros. Aos pobres, aos fracos, aos velhos, aos desgraçados. Eles é que caem. Não me admirava que surgissem campos para infectados. Zonas de elite para os Imunes. Purgatório para os suspeitos. Novas e determinantes classes: os sujos e os puros.
Hoje um vírus, ontem uma casta, amanhã uma opinião.
Talvez sejam as próprias pessoas a exigir isso, a voluntariar-se em nome do Bem Comum.
Talvez desta vez, todos os organismos de que sempre desconfiámos e tantas vezes nos ludibriaram, estejam a dizer a verdade. A tentar ajudar-nos.
Provavelmente, sou apenas eu a enlouquecer lentamente. Silenciosamente. Isoladamente. Porque se não for eu, são os outros todos.
Afinal, temos de acreditar em algo. Senão, o vazio chega antes do fim. Uma fantasia pode ser mais útil do que a verdade, sobretudo se vivermos numa falácia.
Será este outro dos sintomas não documentados do vírus?
Ao menos a poluição vai-se dissipando e de alguns locais já é possível observar os Himalaias. Por aqui, noto apenas mais poluição humana. O desfile de gente em frente de casa é maior que alguma vez foi e estranho para uma época de confinamento.
De resto, entre 2020 e 1920, a diferença não é grande.
Mais um dia em que vivo é o suficiente para celebrar.
Deixem o medronho correr e façam-se brindes para que o mundo não volte ao normal.