
Cobramor
Antropofobia

Somos misantropia sufocada
solidão dominada
em coisas e cubículos
o coração do deserto
prenhe de brilho
ausente de esplendor
com um queixo de vidro:
gancho, jab, directo
ruína de ilusão
numa outra solidão
que se alimenta no sono
se encontra e se compra
sente e atormenta
em memória escolhida
cortada rente,
em efígie
os grandes gestos
e as palavras épicas
e os deuses esculpidos
no exílio interrompido
um mundo feito com a mão
como já não há quem
lá atrás as guerrilhas
lá atrás os sacrifícios
lá atrás amor clandestino
lá atrás campos de batalha
a elegância das fardas
a certeza das dúvidas
a incerteza dos ideiais,
o fumo que cobria
a cena de guerra
os líderes que comandavam
na frente com discursos
inflamados
e os corpos cansados
inspiradoras palavras de ordem
solidão da morte
morte da honra
duelo até à morte
lá atrás o inimigo
táctil e tangível
a conspiração dos murmúrios
o segredo do espião
os passos surdos na noite
as reuniões na cave
a antecipação do dia
o beijo do condenado
a última refeição
as horas finais que crescem
incham e esticam
até conterem mil vidas
flash num segundo
a alegria e a euforia
na subversão e na fé
do errado e na brecha
que abre para o potencial
do que pode acontecer
do que se pode perder
povo, arma-te afinal
o rei está deposto
o bispo defenestrado
para ser devorado pelos cães
o burguês enforcado
e o imperador exilado
rejubila, sê feliz
um acto de amor
em morte violenta
festa nas ruas
magnificência da vitória
fama da derrota
orgulho na existência
nobreza da vida
- ao menos fizemos algo - direi
um destino que existe
para o homem que desiste
de morrer em pé
para viver ajoelhado