
Cobramor
26 de Abril

Já fomos suspeitos
de inspirar a vida
tivemos dias feitos de
exaltadas conspirações,
burburinho com rumo
entre os copos cintilantes
os olhares brilhantes e
cigarros partilhados em
dedos inquietos e animados
Havia ajuntamentos espontâneos
punhos erguidos, vozes animadas
tertúlias apaixonadas em
tardes de café e bagaço
até que os longos cabelos, os bigodes
e as patilhas foram vencidas pelo cansaço,
rezou da história, o fracasso.
Na celebração desenterrados
carpidos em anual nostalgia
como uma possibilidade que morreu
esventrada e autopsiada
fossilizado num miserável legado
de imagens extraviadas
desenquadradas e apagadas
vazias de emoções, devoradas
pelas pequenas concessões
que sangram almas
estivemos perto
mas morremos na praia
da utopia para o deserto
aburguesou-se a revolução
sacrificaram-se valores pelo pão
nosso de cada dia
armistício entre os esbirros
e os clandestinos, secreta guerra
entre a demolição
e a nova constituição
adeus ao copo de três e ao operário
venha a tia, o executivo
e o trabalhador temporário
descontam-se os direitos
contam-se os resultados
e nem saímos empatados
Na televisão nasceram
discursos vazio, gestos ensaiados
dividir para reinar
governar é facturar
agora que o inimigo saiu
da cadeira para todo o lado
ergue a nossa bandeira
camuflou-se de progresso
através da multiplicação
- Tudo pela nação, nada contra a nação
diz a mão que nos alimenta
sem ninguém a morder
ecos do passado
ficaram soterrados
sob a liberdade das compras
o inimigo comum
que a todos unia
já não é apenas um
é a esquizofrenia do quotidiano
dos conspiradores, a extinção
junta-nos apenas a exclusão
e o receio de perder tudo
que apenas é uma mão
cheia de nada, que
tanto trabalhámos para conseguir
agora não resta para onde ir
se não em frente
dê lá por onde der.
agora conversas ocas de ocasião
sobre a bola, o tempo
e como o trânsito está lento,
sobre aquele que morreu
- Se isto continua a assim,
pobre vou ser eu.
os actos desfalecidos
os compromissos esquecidos
como livros empoeirados
como discos riscados
ideais esquematizados
bustos por detrás de sinais
idosos nos lares
vagabundos nas ruas
trabalhadores exemplares
crianças subservientes
animais obedientes
amor na hora marcada
a estrada não está barricada
a terra mais desertificada
a luta nunca é iniciada
revolta sem consequência
vence a rotina assassina
está confortável, a resistência
toma-se passividade por unidade
o medo por humildade
ganha-nos o entretenimento
auto do consumo,
as bombas por rebentar
as armas por disparar
os cravos por erguer
os protestos por cantar
manifestações por marchar
televisões por apagar
fábricas por ocupar
quem é que consegue aguentar?
decisões nas mãos de outro qualquer
como se não pudéssemos escolher
o rumo de cada segundo
em vez de bater no fundo
mas isto vai andando
nem que seja como água
a escorrer pelo ralo
porque, lá diz o povo
em Abril águas mil,
e o povo é que mais ordena
e tudo vale a pena
se a alma não for pequena
por isso cantamos de novo
Grândola, Vila Morena
a ver acontece alguma coisa
mas fica tudo na mesma
já é bom não piorar, porque
se soubesses o que custa mandar
gostarias de obedecer toda a vida.